As Forças Armadas são cruciais para a manutenção da ordem democrática, mas inexiste autorização na Constituição da República de 1988 para que haja uma “intervenção militar” autônoma e direta.
Não.
Inexiste autorização na Constituição da República de 1988 para que haja uma
“intervenção militar”, como querem alguns grupos que são contrários ao mandato
da atual presidenta da República. Pelo contrário, a Constituição aborda as diretrizes das Forças
Armadas em um título chamado “Da defesa do Estado e das instituições
democráticas”, demonstrando a elevada importância que tem essa instituição na
defesa da ordem democrática e constitucional que, a duras penas, foi
conquistada pelo povo brasileiro.
O tenso clima causado pela grave crise
política que passa o Brasil deu azo para a criação de vários grupos que
contestam a continuidade do mandato da atual chefia do Executivo federal,
especialmente após as graves denúncias reveladas pela Operação Lava Jato
ligando a alta cúpula do governo a um megaesquema de corrupção na Petrobrás.
Nesse momento de contestação, um processo de impedimento (impeachment)
foi aberto, o qual, apesar de não versar sobre as denúncias de corrupção,
canaliza a insatisfação de setores da sociedade, além da baixa popularidade da
presidenta.
Alguns
desses grupos insatisfeitos com o governo federal propõem, principalmente nas
redes sociais, uma estapafúrdia “Intervenção Militar Constitucional”. No Facebook, um popular grupo com
esse nome, com mais de 30 mil membros, tem uma publicação em que mostra suas
pautas – entre elas, após a tomada do poder pelas Forças Armadas, um governo
provisório que deve confiscar os bens de políticos corruptos, instituir
concurso público para escolha de políticos e fiscalizar as unidades da
federação –, tudo sob a égide daConstituição de 1988[1].
Entretanto,
não há possibilidade alguma de uma intervenção militar desse tipo ocorrer em
respeito à Constituição Federal.
O caput do Art. 142 da Constituição diz o seguinte:
Art. 142. As Forças
Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são
instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na
hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da
República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes
constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
De acordo com o artigo acima, as Forças
Armadas são subordinadas à Presidência da República, que é seu comando supremo.
Além disso, duas são as principais funções das Forças Armadas: a defesa da
Nação contra ataques externos (“defesa da Pátria”) e a garantia dos poderes
constitucionais. Em casos excepcionais, devem garantir a lei e a ordem interna
(o que, normalmente, cabe a forças de segurança pública – polícias estaduais e federais),
mas somente por iniciativa e ordem dos representantes dos poderes
constitucionais (que são o Executivo, Judiciário e Legislativo).
As Forças Armadas não podem agir
autonomamente, fora da autoridade de um poder constitucional, seja do comando
supremo da Presidência da República, ou de iniciativa da Presidência do
Congresso Nacional ou do Supremo Tribunal Federal, no caso de garantia
excepcional da lei e da ordem. Até porque, frise-se, são guiadas pelos
princípios da hierarquia e disciplina.
(Por óbvio, o uso das Forças Armadas, seja no cumprimento de suas funções
ordinárias ou extraordinárias, não é sinônimo de intervenção militar.)
A
Lei Complementar nº 97/99 ratifica o dito
acima. O seu Art. 15, § 2º - também usado por alguns para ratificar a dita
intervenção constitucional dos militares – endossa o caráter excepcional do uso
das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem interna. Vejamos:
Art. 15.
(...)
§ 2o A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da
ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de
acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após
esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da
incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição
Federal.
Ou
seja, a lei complementar reafirma o que diz a Constituição.
Na Carta Magna, o
capítulo relativo às Forças Armadas se insere no título V, que tem um nome
muito interessante: “Da defesa do Estado e das instituições democráticas”.
Lembremos que a Constituição de 1988 foi escrita após um longo e
sombrio período de ditadura (civil-) militar, iniciada em 1964. Os políticos
que fizeram a Constituiçãoatual
(chamados constituintes) incluíram as Forças Armadas em tal capítulo a fim de
tornar ainda mais graves intervenções antidemocráticas que possivelmente
pudessem acontecer com o amparo dessa instituição.
É por isso que assim escreve José
Afonso da Silva[2]:
“A Constituição vigente abre a elas um capítulo do
Título V sobre adefesa do Estado e das instituições democráticas com a destinação acima referida, de
tal sorte que sua missão essencial é a da defesa da Pátria e a garantia dos
poderes constitucionais, o que vale dizer defesa externa e, por outro lado,
defesa das instituições democráticas, pois a isso corresponde a garantia dos
poderes constitucionais, que, nos termos da Constituição,
emanam do povo (art. 1º, parágrafo único).” (grifos no original)
Assim, diante de tudo exposto, é
forçosa a conclusão de que inexiste intervenção militar constitucional[3]. O
momento de instabilidade política é propício para soluções fáceis, que
atropelam a democracia e o Estado de Direito que a duras penas foram
conseguidos e com muito suor é mantido. A democracia não é uma forma fácil de
governar, já que exige que todas as opiniões sejam, no mínimo, ouvidas e
debatidas no jogo político. Quando escândalos e crises a abalam, a tênue
estrutura que a mantém se abate fortemente, ficando à espreita dos que a odeiam
e querem tomar o poder a todo custo.
O Brasil, além de expurgar todos os
males de uma classe dominante golpista (a República foi instaurada com um golpe
militar; seguidos golpes ocorreram em 1930, 1937 e 1964), deve saber conviver
com crises de instabilidade e até conflitos entre os poderes sem a necessidade
de massacrar mais uma vez sua jovem democracia. A invenção de um constitucional
golpe militar é uma faceta de um perigoso momento: o fantasiamento de
movimentos golpistas com o manto da juridicidade e legitimidade democrática.
[1] Disponível aqui:https://www.facebook.com/groups/257299714395248/?ref=ts&fref=ts.
[2] SILVA,
José Afonso. Curso de Direito
Constitucional Positivo. 25ªº edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2005,
p. 772.
[3] Aponte-se que tal invenção não se
confunde com o instituto da intervenção federal, regulada pelos arts. 34 e seguintes daConstituição.
Nesse caso, o decreto e a execução são competência da presidência da República,
com autorização do Congresso. As Forças Armadas, se agirem, o farão sob a
autoridade dos poderes constitucionais.
Posta originalmente por Higor Araujo no JusBrasil